Há muitos críticos do marxismo que referem uma certa aversão de Karl Marx e seus correligionários futuros pelo “indivíduo”, como se os marxistas tratassem de desumanizar ou anular as características internas do indivíduo, buscando uma espécie de "igualdade de natureza" entre as pessoas, ou seja, o fim de diferenças pessoais. Eu sempre vejo esse tipo de argumento ser utilizado contra o socialismo por liberais e acefalia xarope ltda. É muito fácil falar em "natureza" humana, não é? Uma criança tem um brinquedo e quer dois; tem dois e quer quatro. Essa é a natureza humana, certo? Agora, quando essa sociedade passa a agir dessa forma de maneira monopolizante excluindo e oprimindo os menos afortunados, disseminando massivamente valores como o egoísmo, o individualismo, a competição ferrenha, a concorrência de todos contra todos, o consumismo desenfreado, permitindo que a lógica e lei do Capital tomem conta se fazendo sentir de maneira decisiva na vida, formação e desenvolvimento da consciência das pessoas em forma de reificação (a transformação do que outrora era objeto, dinheiro, em sujeito; o que era sujeito, homem, em objeto desse sujeito abstrato), na maneira em como elas interagem com seu semelhante e enxergam a realidade ao seu redor etc., essa é a natureza humana?! "Criar uma comunidade – uma realidade social – em que seja impossível que ela independa dos indivíduos, em que eles controlem os processos sociais de modo a realizar suas potencialidades. Marx está longe, bem longe, de ser hostil ao indíviduo.”, foi o que ouvi certa vez do forista "Groucho Marxista", na comunidade orkutiana Karl Marx – Brasil, em debate sobre o assunto. Groucho estava certo. O caminho é mais ou menos este mesmo: o do fim da alienação (alheamento). O homem não seria mais um joguete de forças materiais externas ("(...) não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência..."), mas um artífice do mundo. Não viveria mais em uma "gaiola invisível" onde as suas oportunidades muitas vezes são defninidas por forças que ele simplesmente não pode ver, imaginar ou determinar; em suma, não estaria mais em contradição com o mundo, mas seria parte dele, "sentiria-se em casa". Pois bem, posto isto, tenho uma revista aqui em casa com alguns ensaios do incomparável Ernesto Che Guevara e também de autores analisando pontos caros do seu ideário político - acho que tem na internet também. Ele debruçou parte e demonstrou importância considerável nos seus estudos e investigações ao tema do indivíduo em questão, ou melhor, do que seria o indivíduo integral, "o homem novo" socialista. Compilei algumas coisas, acrescentei outras, enfim, espero que sirva para elucidar alguns pontos... ao meu ver é uma contribuição bastante relevante. Tô desde ontem de noite em cima disso e deu trabalho montar tudo, então, para a meia dúzia de grilos que por acaso lerem isto, façam-no com atenção, ok? Haha.
Che Guevara não foi apenas um homem lírico, um poeta, desses indivíduos que, em lugar do fuzil às costas, tinha nos lábios o verbo em fogo da Revolução.
Che refutava a tese de que a construção do socialismo significava a “abolição do indivíduo”. Pelo contrário, o indivíduo era a essência da revolução. Mas que tipo de indivíduo? “O “verdadeiro homem” – a “verdadeira pessoa humana” – não existe realmente na sociedade capitalista salvo em uma forma alienada e reificada na qual encontramos ele como “trabalho” e “capital” (propriedade privada) opondo-se antagonicamente.” (MÉZÁROS, 2006: 106). O homem socialista aparece para Guevara como uma superação dialética desse homem capitalista, alienado pelas relações de produção regidas pelas leis do Capital. Retomando os “Manuscritos econômicos-filosóficos”, Che se funda na concepção marxista do comunismo como “solução do conflito entre o homem e a natureza e do homem com o homem”, como processo de real apropriação de sua essência e, portanto, como fenômeno consciente. "(...) Retornando assim à concepção original de Marx, ele afirma que o comunismo não pode ser, o resultado “objetivo” do desenvolvimento econômico sob um Estado socialista”, mas somente o processo pelo qual a humanidade se apropria de seu social. (SADER, 1981, p.24) Guevara escreve que no socialismo o homem deve desenvolver uma nova consciência, para poder avançar na construção da sociedade revolucionária. Em seus estudos, Che parte da compreensão de que não se pode chegar ao comunismo mediante apenas o crescimento, o desenvolvimento e a nacionalização das forças produtivas. Ele afirma que: “Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material tem que se fazer o homem novo.” (GUEVARA, 2005, p.51). Portanto, sua concepção ressalta que a sociedade em construção revolucionária deveria forjar um novo indivíduo, e este seria a negação dialética do homem alienado, soterrado pelo pensamento individualista burguês do capitalismo. Essa citação afirma que o pensamento de Che coloca o homem no centro da construção do socialismo. É essa ação humana que transforma as condições objetivas, que muda uma realidade conhecida, que modifica as relações de produção e reprodução, as quais os homens são submetidos. E mediante essas transformações, também se forja outro pensamento, novas idéias surgem, ou seja, a consciência também ganha nova forma. Portanto, o homem do qual Marx e Engels falam e Che retoma essa interpretação é o homem em revolução constante, por meio de uma prática, que está estreitamente ligada à atividade material. Che retoma o pensamento de Marx na análise do papel do homem em sua ação revolucionária, entendido como ser social que transforma a si mesmo, concomitantemente com a transformação da sociedade, em outras palavras, são os homens que mediante a luta de classes movem o ambiente histórico. Ele elucida que não basta transformar a base econômica da sociedade em transição é preciso simultaneamente construir um homem desprovido dos valores da sociedade pré-revolucionária. Sua concepção elucida, sobretudo, o papel do homem como sujeito da transformação histórica, entendido como ser social que transforma a si mesmo concomitantemente com a transformação da sociedade.
“O individualismo em si, como ação isolada de uma pessoa num ambiente social, tem que desaparecer de Cuba. O individualismo de amanhã deve ser a utilização adequada do indivíduo por inteiro para o benefício absoluto da coletividade (...) Acho um crime se pensar constantemente em indivíduos, porque as necessidades do indivíduo passam inteiramente para segundo plano diante das necessidades do coletivo”. Ainda na mesma linha, sobre o indivíduo: “Acredito que o mais simples é reconhecer sua qualidade de não-feito, de produto não acabado. As taras do passado são transmitidas, no presente, na consciência individual e há necessidade de se fazer um trabalho contínuo para erradica-las. (...) é necessário que se desenvolva uma consciência na qual os valores adquiram categorias novas. A sociedade em seu conjunto deve transformar-se em uma gigantesca escola. (GUEVARA, 2005: 50-51)”... Outra coisa: seu pensamento elucida que a transição é marcada pelo antagonismo e conflito entre as novas relações sociais que subsistem ao mesmo tempo com as antigas taras do capitalismo. No socialismo deve-se suprir o legado da velha sociedade, negá-la e superá-la. Os mais terríveis adversários para a conscientização das massas são a ambição demasiada e os hábitos egoístas do capitalismo; a força do costume individualista burguês, que busca satisfazer apenas interesses individuais. Esse legado é o maior inimigo da nova sociedade, um gigantesco oponente no processo de construção do ‘homem novo’ e da sociedade socialista.
Che explica esse processo, mediante o exemplo de uma pessoa que se recupera de uma enfermidade: “É como um mal que tivera inconscientemente uma pessoa. Quando acaba o mal, o cérebro recupera a claridade mental, mas os membros não coordenam bem seus movimentos. Nos primeiros dias, após sair do leito, o andar é inseguro e pouco a pouco vai adquirindo a nova segurança. É neste caminho que estamos.” (GUEVARA, 2005: 22). Che reafirma a necessidade de trabalhar a consciência de cada indivíduo para que adquira novos hábitos e valores. Sua concepção atenta que o homem deve sobrepujar suas ambições individualistas burguesas em favor dos interesses coletivos, que representem verdadeiramente todo um grupo e não interesses particulares.”Nós não podemos estimular e sequer permitir atitudes egoístas nos homens, se não quisermos que os homens sigam o instinto do egoísmo, da individualidade; (...) O conceito de uma sociedade superior, pressupõe um homem desprovido desses sentimentos, um homem que tenha subjugado esses instintos.” (CASTRO apud FERNANDES, 1979: 154). Isso implica que o homem que veio de uma sociedade individualista deve alcançar um alto grau de consciência social, em outras palavras, ele deve estar impregnado de sentimentos de amizade, fraternidade, compreensão, etc. O pensamento de Che defende o valor do humanismo, do homem que compreende e cumpri seu compromisso e dever perante a sociedade em construção e transformação.
O cubano Fernando Martinez Heredia, em sua obra Ché, el socialismo y el comunismo, afirma que: “En la concepción del Che la conciencia es la palanca fundamental, el arma para lograr que las fuerzas productivas y las relaciones de producción sociales dejen de ser medios para perpetuar la dominación, como era en el capitalismo”. (HEREDIA, 1989: 70) E Luiz Bernardo Pericás, em sua tese, Che Guevara e o debate econômico em Cuba, acrescenta que: “O importante seria, portanto, transformar esse homem individualizado no homem socialista, que precisaria da comunidade para desenvolver sua individualidade”.(PERICAS, 2004: 170) A concepção de Guevara retoma o pensamento de Marx, que conforme seus estudos, a consciência não é pura, ela é influenciada pelo meio social, pela relação dos homens com outros homens. “A consciência é, antes de tudo, mera consciência do meio sensível mais próximo e consciência de uma interdependência limitada com as demais pessoas e coisas que estão situadas fora do indivíduo que se torna consciente”. (MARX; ENGELS, 2004: 23)
A consciência é em sua origem um produto social, nascido das relações humanas, ou seja, do seu meio sensível mais próximo. Partindo dessa afirmação exposta por Marx, Che argumenta em favor de uma transformação da consciência desse homem que vem do capitalismo, mediante a produção da vida material, por meio de suas relações sociais com outros homens, atuando em sociedade. Se o homem é sujeito da transformação histórica, a revolução proletária, só pode se concretizar como um ato consciente! Essa condição parte de uma premissa fundamental do socialismo científico, exposta por Engels: "A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentado com algo imposto pela natureza e a história, é, de agora em diante, obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história, colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade." (ENGELS, 2003: 65)
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