quarta-feira, 9 de março de 2011

Marx e Nietzsche, duas constelações e um destino.

"POR QUE SOU UM DESTINO", capítulo de "Ecce Homo"... lembram? Então, George Lukács (pensador marxista húngaro) nutria uma visão bastante escrupulosa em relação ao pretenso projeto de Nietzsche para a filosofia, já presunçoso na sua mocidade, atingindo o ponto mais elevado (Nietzche curtia um cume de montanha, hum?!) no final deste mesmo "Ecce Homo". "Eu carrego nos ombros", escreve o pensador, "o destino da humanidade” (Ecce Homo, O Caso Wagner, §4). Em "Por que sou um destino", ele vai tão longe, a ponto de nomear a si próprio como um destino. Nenhum filósofo antes de Nietzsche se expressou assim: ninguém se declarou como um destino, não apenas da filosofia, mas também da própria humanidade. Pois é, Lukács via a filosofia de Nietzsche como um destino sim, mas o da "destruição da razão".


Para George Lukács, longe de representar o "futuro da filosofia e o destino da humanidade", Nietzsche caiu em um universo conceitual idealista e metafísico, algo totalmente anti-materialista e anti-dialético. O que Marx diria da sua filosofia: "O ópio do indeterminismo?"

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Lukács:

"Não há um único motivo da estética fascista que não proceda, direta ou indiretamente, de Nietzsche; não vale a pena enumerá-los aqui, a comecar pela doutrina do mito e do antirrealismo."

1) Lukács se interessa por Nietzsche como pensador da estética (e não como pensador a priori). Ele quer saber quais sãoo os juízos estéticos de Nietzsche, como ele avalia as principais questoes (gosto, prazer, verdade) ligadas à arte. O modo como ele Lukács chega a esse objeto é o método marxista. É como um materialista histórico que ele analisa Nietzsche, e isso implica: 1) ver Nietzsche historicamente situado e 2) analisar Nietzsche dentro do sistema produtivo ou, se isso nao for possível, buscar nele indícios do conflito de classes. Método: marxisto e historicismo. Objeto: como Nietzsche se relaciona com a estética.

(...)

2) Lukács, por sua vez, quer Nietzsche como uma figura de seu tempo, limitada, determinada por condicoes históricas. Ele está interessado no Nietzsche como um resultado do processo histórico. É claro que o marxismo de Lukács é desenvolvido a ponto de conceber grande liberdade subjetiva a todos os indivíduos, o que lhe faz considerar Nietzsche como um grande pensador, um filósofo de primeira linha, um ser realmente autentico. É por isso que, para um historiador (ou um pensador de epistemologia materialista-histórica), Nietzsche é também um prato cheio.


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I want no `believers'. I think I am too malicious
to believe in myself; I never speak to masses. - I have
a terrible fear that one day I shall be pronounced
holy.
Friedrich Nietzsche, Ecce Homo,1885

In 1952 Georg Lukács wrote one of the great denunciations of a major Western philosopher. The Destruction of Reason introduces Nietzsche as a vigorous campaigner in a bitter ideological war waged by the bourgeoisie against the historical ambitions of the European proletariat in the last decades of the nineteenth century. Lukács describes Nietzsche as an astute witness to the cultural psyche and an uncanny diviner of the particular mix of needs experienced by the German intelligentsia throughout this turbulent period. Hungry for cultural rebirth yet fearful of social and political change, the nervous and confused intelligentsia discovered in Nietzsche's philosophy just the sort of mythologized images of a rebellious, creative spirituality it craved. As a receptacle for the malcontent consciousness and disappointed hopes of the intelligentsia, Nietzsche's philosophy functioned to drive this group further into a retreat from real historical processes, snapping any potential ties with the real bearers of cultural renewal - the European proletariat.

Lukács at this time refuses to be taken in by Nietzsche's explicit denials of the systematic character of his thinking. By building up a portrait of those elements which enabled this philosophy to perform a vital ideological role in the class struggles of its age, Lukács discovers its real coherence and system. His philosophy performed the social task of `rescuing' and `redeeming' the German intelligentsia. It offered:

a road which avoided the need for any break, or indeed any serious conflict, with the bourgeoisie. It was a road whereby the pleasant moral feeling of being a rebel could be sustained and even intensified, whilst a `more thorough', `cosmic biological' revolution was enticingly projected in contrast to the `superficial', `external' social revolution.

For the later Lukács, unsystematic Nietzsche is simply a disguise through which the organizing ideological significance of his work must be discerned.

In the deluge of recent literature on Nietzsche, Lukács's sweeping condemnation is generally passed over in silence or used to illustrate the inadequacy of a totalizing ideological reading of this supposedly open-ended and anti-systematic philosophy. Although it was written only some fifty years ago, the philosophy of history and the political commitments which inspire Lukács's Nietzsche critique speak to a contemporary audience as from a dead epoch. This denunciation posits a reader already convinced that the realization of humanity's telos is self-evidently identified with the socialist cause. In the wake of the collapse of Eastern-bloc socialism, and with the rise of new social movements, such a reader has become virtually extinct. To late-twentieth-century critics of modern society, the very radicalness of Nietzsche's attack on the key values of modernity is the essence of his appeal. In particular, Nietzsche's reflection on knowledge and power, with its fundamental premiss that reason is nothing more than a perverted and disguised will to power, has been embraced by a generation discontented with the fruits of Enlightenment. In the face of the intensified, multidimensional vision of modernity's `iron cage', modern readers of Nietzsche have found a seeming ally in their suspicions regarding all humanist assertions of solidarity and all appeals to humanity's telos. Nietzsche's attack on the levelling image of equality harboured by the Christian bourgeois tradition has seemed to some radical critics of late modern society to voice their own crisis of faith. Foucault, for example, has described his own critique of the disciplinary society as `quite simply Nietzschean' in motivation.

In Nietzsche's repudiation of the principle of equality and in his loathing of the `herd', the committed communist Lukács discovers a backward-looking repudiation of the positive achievements of modernity. By contrast, contemporary interpreters have tended to seek in Nietzsche an advocate of their own deep misgivings about the levelling suppression of the different, the displaced, and those marginalized by the abstract liberal conception of equality. More than this, a number of contemporary interpreters have sought to brush Nietzsche's philosophy against the grain to discover in it the seeds of a new conception of social co-operation; one capable of sustaining, not suppressing, a commitment to the expression of positive difference.

The following article investigates the efforts of a range of recent interpretations concerned to establish Nietzsche's relevance to us. Against the totalizing character of Lukács's reading, these interpretations typically suppose themselves uninterested in the disclosure of the essential truth of Nietzsche's texts: theirs is an avowedly appropriative interest concerned to harness aspects of Nietzsche's philosophy to the clarification and elucidation of contemporary concerns and ideologies. Whilst recognition of an ongoing hermeneutical struggle between the texts and their modern interpreters is signalled through the invariably strategic character of these readings, many important lapses in the realization of their manifestly anti-totalizing intentions can be discovered in the work of this recent generation of Nietzsche interpreters.

fonte: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp?channel_id=2188&editorial_id=10471

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O axioma que fica parece óbvio, ao menos para a visão luckasiana: a crítica nietzscheana da modernidade simplesmente abstrai o papel genético do valor na sociabilidade capitalista. Exatamente por isso, ela termina por reproduzir, idealmente, a ideologia burguesa. Enquanto Marx parte da vida cotidiana social, portanto, da prática, Nietzsche parte das representações, das idéias, das opiniões, dos valores morais, dos significados das palavras, etc. "A linguagem não é o espelho do mundo, mas nos oferece acesso ao mundo. Com isso, ela sempre orienta nosso olhar sobre o mundo de uma maneira já determinada. Nela se se encontra inscrito algo como uma visão de mundo", disse o filosófo Jurgüen Habermas, da segunda geração da Escola de Frankfurt. Essa é, aliás, uma das razões para Wittgenstein desmerecer toda a filosofia. Como os filósofos anteriores não conheciam a verdadeira lógica da linguagem, o que faziam eram discursos que nada tinham com a realidade. Pensavam que estavam elaborando problemas, mas eram apenas falsos problemas: "A gramática não tem contas a prestar à realidade. As regras gramaticais nada mais fazem que determinar o significado; por isso não são responsáveis perante o significado, e nessa medida são arbitrárias''. Desta maneira, Wittgenstein reduz a filosofia de Nietzsche, Schopenhauer e Kant a simples discursos falsos. Para Wittgenstein, existem algumas coisas que se podem dizer, outras se podem apenas "mostrar". É exatamente isto que Marx faz. Marx não nos deu uma lógica; ele nos deu, ou melhor, "mostrou" a lógica do Capital, ou ainda como disse Lenin quando perguntado sobre "o que era o marxismo", respondendo de forma canônica e lapidar: "É a análise concreta de objetos concretos". Marx não parte do pensamento, parte do indivíduo que pensa. O pensamento é um dos tantos atributos dos indivíduos, e varia de acordo com a vida social e histórica dos indivíduos. Nietzsche, assim como os neo-hegelianos, pensa que a esfera espiritual, a cultura, determina a vida a partir de si própria (e por isso, volta a fazer a crítica à religião, à moral, etc. - até chegar no ponto de moralizar a ciência e relativizar o conhecimento!). Pensa que os grilhões que aprisionam os homens são meras crenças (quando não cai desse espiritualismo cristão "às avessas" no mais crasso materialismo naturalista). Sequer desconfia que a raiz da decadência que supostamente critica está na esfera das relações sociais de produção; Nietzsche simplesmente ignora o que seja a economia. Nietzsche é notável não por suas “críticas”, mas por oferecer ao burguês uma “saída”, ou melhor, um consolo ideal para apaziguar a consciência de ser burguês – é da decadência que Nietzsche espera o retorno dos fortes. Definitivamente um anti-materialista e anti-dialético. Enquanto Nietzsche desenterrava Deus, morto desde o Iluminismo Francês (e depois, pela já tardia Aufklarüng alemã, que termina em Feuerbach), para continuar a chutar o cadáver, Marx, desde 1844 (Introdução a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel), já declarava: a crítica à religião está encerrada. Não cabe criticar crenças, cabe criticar O MUNDO que leva aos indivíduos a necessidade de ter crenças.

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Prefácio da Ideologia Alemã:

Até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações em função de representações que faziam de Deus, do homem normal etc.
Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações. Libertemo-los, pois, das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos quais definham. Revoltemo-nos contra este predomínio dos pensamentos. Ensinemos os homens a substituir estas fantasias por pensamentos que correspondam à essência do homem, diz um, a comportar-se criticamente para com elas, diz outro; a expurga-las do cérebro, diz um terceiro – e a realidade existente cairá por terra.
Estas fantasias inocentes e pueris formam o núcleo da atual filosofia neo-hegeliana que, na Alemanha, não somente é acolhida pelo público com horror e veneração, mas apresentada pelos próprios heróis filosóficos com a solene consciência de sua periculosidade revolucionária mundial e de sua brutalidade criminosa. O primeiro tomo da presente obra [Feuerbach-Bauer-Stirner] tem por finalidade desmascarar esses carneiros que se julgam lobos e que assim são considerados; propõe-se a mostrar como nada mais fazem que balir filosoficamente as representações dos burgueses alemães e que as fanfarronices desses intérpretes filosóficos apenas refletem a derrisória pobreza da realidade alemã. Tem por finalidade colocar em evidência e desacreditar essa luta filosófica com as sombras da realidade, que convém ao sonhador e sonolento povo alemão. Certa vez, um bravo homem imaginou que, se os homens se afogavam, era unicamente porque estavam possuídos pela idéia da gravidade. Se retirassem da cabeça tal representação, declarando, por exemplo, que se tratava de uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam livres de todo perigo de afogamento. Durante toda sua vida, lutou contra essa ilusão da gravidade, cujas conseqüências perniciosas todas as estatísticas lhe mostravam, através de provas numerosas e repetidas. Esse bravo homem era o protótipo dos novos filósofos revolucionários alemães. Todos os críticos filosóficos alemães afirmam que os homens reais têm sido até aqui dominados e determinados por idéias, representações e conceitos, que o mundo real é um produto do mundo ideal. /.../ concordam na crença no domínio dos pensamentos; concordam na crença de que seu ato de pensar crítico levará, fatalmente, à destruição do estado de coisas existente, seja porque imaginam que sua atividade pensante isolada é suficiente para alcançar esse resultado, seja porque querem conquistar a consciência universal. Desde que os jovens hegelianos consideravam as representações, os pensamentos, os conceitos – em uma palavra, os produtos da consciência por eles tornada autônoma – como os verdadeiros grilhões dos homens (tal como os velhos hegelianos neles viam os autênticos laços da sociedade humana), é evidente que os jovens hegelianos têm que lutar apenas contra essas ilusões da consciência (e que uma modificação da consciência dominante é o objetivo que se esforçam por atingir). Uma vez que, segundo suas fantasias, as relações humanas, toda a sua atividade, seus grilhões e seus limites são produtos de sua consciência, os jovens hegelianos, conseqüentemente, propõem aos homens este postulado moral: trocar sua consciência atual pela consciência ‘humana’, ‘crítica’ ou ‘egoísta’ (respectivamente: Feuerbach, Bauer, Stirner. - EHG), removendo com isso seus limites. Exigir, assim, a transformação da consciência vem a ser o mesmo que interpretar diferentemente o existente, isto é, reconhece-lo mediante outra interpretação (11a. tese Ad Feuerbach. - EHG). A despeito de suas frases que supostamente “abalam o mundo”, os ideólogos da escola neo-hegeliana são os maiores conservadores (o que é fácil de se constatar entre os que usam “martelos” e “dinamites” à vontade... de poder – voluntarismo. - EHG). Os mais jovens dentre eles descobriram a expressão exata para qualificar sua atividade quando afirmam lutar unicamente contra ‘fraseologias’. Esquecem apenas que opõem a estas fraseologias nada mais do que fraseologias e que, ao combaterem as fraseologias deste mundo, não combatem de forma alguma o mundo real existente. [...] A nenhum destes filósofos ocorreu perguntar qual era a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a conexão entre a sua crítica e o seu próprio meio material.

- KARL MARX & FRIEDRICH ENGELS, 1846.

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Um comentário:

  1. Citando o educador matemático Rômulo Lins (de forte inspiração em Vigotski, psicológico soviético cujo trabalho se orientou pelos pressupostos marxistas) num texto de 1999("Por que discutir Teoria do Conhecimento é relevante para a Educação Matemática?"), "Toda a tentativa de se entender um autor deve passar pelo esforço de olhar o mundo com os olhos do autor, de usar os termos que ele usa de forma que torne o todo do seu texto plausível, e é aqui que devemos prestar atenção às definições que um autor propõe" (p. 93).
    Não adianta ler Nietzsche com os pressupostos de Marx. Isso não é entendê-lo. É preciso ler Nietzsche em torno de seus próprios interlocutores, e é preciso ler Marx da mesma maneira. Qualquer compreensão que prescinda desse algo descarta a visão de mundo de um autor, pois opera fora da lógica que o orienta, o que torna a crítica linguisticamente mais forte e, ao mesmo tempo, cognitivamente mais fraca, uma leitura de fora que desconsidera (embora afirme considerar) os espaços-tempos singulares de cada autor (ou, deveria dizer, de cada teoria que instaura uma cognição, um modo de compreensão do mundo, da sociedade e das próprias relações de poder que acontecem na sociedade capitalista).

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