Assisti há algum tempo atrás uma palestra do excelente psicanalista Jorge Forges expondo em termos gerais a contribuição do grande Jacques Lacan para uma nova perspectiva psicanalítica contemporânea, isso é, freudiana (edípica) mas vista de uma perspectiva mais sofisticada, horizontal (pós-edípica), em compasso com as mudanças radicais provocadas no indivíduo inserido na ordem social em tempos de globalização e capitalismo tardio (sic). Após explicar as diferenças entre os dois períodos fundamentais da obra do psicanalista francês, a Primeira Clínica e a Segunda Clínica, Forbes - que foi aluno de Lacan nos anos 70 - passou por uma gama bastante elástica de assuntos à luz da análise lacaniana, mas um tema em especial chamou minha atenção: a felicidade. Para este texto, valerei-me de uma série de intervenções compiladas do próprio Forbes e citações feitas por ele de outros autores durante sua exposição.
Para muitos, o mais original e influente pensador da psicanálise depois de Freud. Suas ideias revolucionaram a prática clínica. Foi o responsável pela aproximação entre psicanálise, linguística e estruturalismo, valendo-se primeiramente das teorias de Ferdinand de Saussure e mais tarde da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss.
Mas o que afinal Lacan nos diz sobre a felicidade, qual é a concepção de felicidade para o psicanalista doidão (colocar "psicanalista" e "doidão" na mesma frase parece-me um pleonasmo haha, mas enfim...): “Existe o feliz acaso, aliás, só existe isto; felicidade do acaso”, ele nos diz. Que felicidade é esta? É uma felicidade certamente distinta dessa felicidade que nós estamos acostumados a pensar. Essa felicidade é do acaso porque ela não tem nome, ela não pode ser nomeada. O filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben nos diz: “Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito! Felicidade não é bem que se mereça. (...) Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor”. Felicidade que não progride, nem se acumula, pois se assim fosse acabaríamos estourando em sua plenitude. Essa felicidade é uma felicidade que não pode se explicar, não é uma verdade provada, mas sim verdade indeterminada, experimentada, fragmentariamente, no varejo de nossas sensações e emoções.
Ela foge às definições e explicações objetivas da consciência. Felicidade que põe em dúvida a nossa identidade, fruto do acaso, da surpresa, do inesperado, do inusitado no sentido em que a palavra nos lembra, do que é sem lugar e tempo definidos para acontecer. Momentos de felicidade - são sempre momentos e não essências -, momentos de amor fulgurantes em que a pessoa experimenta a sensação de quase-morte. Em que a pessoa tem uma sensação como se estivesse no olho de um furacão, uma sensação de perda de identidade ou de colocá-la em risco, uma sensação de tontura; uma sensação de querer agarrar-se no outro. Esse amor é um amor incômodo, um inquietante animador. O mais complicado é deparar-se com essa coisa dura que não tem nome nem nunca terá, frente a qual não há o que se decifrar, e darmo-nos conta de que nós é que deveremos nomeá-la baseados na nossa experiência singular e nos responsabilizarmos por ela.
Amores expressos na sua impossibilidade - amor que você tenha que encontrar uma solução para ele, uma expressão para ele, e que você encontra de fato às vezes, mas temporariamente, rapidamente de tal forma que faz com que quando você o expresse logo em seguida você mesmo se pergunte: “Será que eu consegui?”, - no seu fim que não muda pela vontade, que insiste nesse seu fim em si de ser impossível. A grande sacada é poder dar um passo além do trágico dessa impossibilidade, e o passo além é exatamente abrir mão da segurança no trágico, da incerteza que é a materialização do complicado, do “impossível” e da falta de perspectiva como tal, para passar da dificuldade à invenção. A vontade de, ao invés de resignar-se, sustentar que a aceitação das adversidades não implica capitular-se ou entregar-se diante delas, mas sim enfrentá-las e combatê-las. Ainda em Agamben: “(...) A magia não é conhecimento dos nomes, mas gesto, desvio em relação ao nome (...) Logo que inventa um novo nome, ela, a pessoa, ostentará um passaporte que a encaminha à felicidade. E então podemos entender a frase de Kafka: “Se chamarmos a vida pelo nome justo ela vem, porque esta é a essência da magia, que não cria, mas chama”. No mais, que diabos seria o amor se não, em última instância, o produto do nível de compreensão que as partes têm uma da outra? "O amor é filho da compreensão; o amor é tanto mais mais veemente, quanto mais a compreensão é exata", disse Leonardo Da Vinci. Ou seria o contrário, seria fruto da incompreensão tácita e, implicitamente, compaixão tácita pela nossa limitação em compreendermos ou obtermos uma visão clara do outro, parcial ou totalmente em si? Meio-termo entre ambos, talvez?!
Enfim... Eu não tenho a menor ideia. As melhores coisas nesta vida se dão porque a gente não as compreende.
Já disseram por aí: "Só é digno da liberdade, como da vida, aquele que se empenha em conquistá-la." (Johann W. Goethe)
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