terça-feira, 10 de julho de 2012

Do conceito de Justiça







A discussão a respeito do real significado daquilo que especulamos idealmente ser a justiça gastou ao longo dos séculos a tinta e pena de muitos filósofos e juristas. Entrementes, tal conceito permanece, ainda hoje, ora um tanto quanto abstrato, ora genericamente empobrecido, dogmatizado friamente na rotina ordinária dos tribunais, recebendo cura meramente semântica na boca de muitos magistrados ainda padecidos pela chaga do tecnicismo mecânico e do normativismo insensível, destituído assim de seu substrato axiológico primordial. As acepções transformaram-se multiformes e relativizadas, subsistindo na zona da indefinição e impalpabilidade


No nosso entendimento, justiça significa dar a cada um o que lhe é de direito na devida medida, assegurar que todos sejam livres e iguais. Justiça significa DAR CONDIÇÕES MATERIAIS MÍNIMAS ÀS PESSOAS para que possam fazer suas escolhas existenciais. A justiça é a guardiã da cidadania e da constitucionalidade. É o anteparo do cidadão para ver concretizados seus direitos individuais e os de toda coletividade.

Nossa Carta Magna de 88, sob sua égide, conferiu importância precípua a tal conceito, introduzindo no âmago do ordenamento jurídico pátrio conceitos como a função social do contrato e da propriedade privada, outrossim guarnecendo enfaticamente o rol de direitos fundamentais, sobremaneira o Princípio da Dignidade Humana.

Contudo, muitas vezes, aos lançarmos olhares mais argutos à realidade objetiva, verificamos o cabal descumprimento do exemplário principiológico referido, como também às exortações constitucionais asseverando sua proteção; diga-se, dos direitos fundamentais insculpidos formalmente na Carta da República. Vivemos diante de um contexto histórico-social em que princípios e práticas se agridem mutuamente a todo instante. 

Tratemos, por exemplo, do princípio da isonomia. Como pode um princípio de um padrão igual de medida, válido para todos os cidadãos do Estado, diante de um contexto histórico-social em que princípio e prática se agridem mutuamente? O Direito da classe dominante que sanciona, principiologicamente, um padrão de medida igual - surgindo, pois, como Direito FORMAL da igualdade –, é, na prática, Direito da desigualdade de classes desiguais MATERIALMENTE. Nesse sentido, podemos aplaudir o escólio de GONÇALVES DA SILVA (2007, p. 168), ao ponderar acerca da Teoria da Justiça em Marx:

“A crítica de Marx ao capitalismo, do ponto de vista de sua teoria da justiça, está calcada num pressuposto sobre o que viria a ser uma troca justa. Uma troca justa é aquela em que homens livres, com autonomia a liberdade, trocam bens e serviços no mercado de tal forma que nenhuma das partes é lesada
.
(...)

Para Marx, embora o capitalismo esteja baseado no trabalho livre, a propriedade privada dos meios de produção, por parte dos capitalistas, implica necessariamente a não-propriedade por parte dos trabalhadores, ou a destituição., Na venda da força de trabalho no mercado de trabalho, os trabalhadores não recebem todo o valor gerado na produção das mercadorias. Uma parte do valor, a mais-valia, é apropriada privadamente pelos capitalistas. Nesse sentido, portanto, a troca que ocorre entre trabalhadores livres e capitalistas no mercado de trabalho é injusta.

(...)

No capitalismo, portanto, o conflito é regra, não a exceção e, nesse sentido, o capitalismo representaria uma forma de produção incompatível com a paz social: ele reproduziria potencialmente um estado de natureza hobbesiano.”

Neste contexto, salienta Marx, precisamente, que, tendo suas raízes nas condições de vida material de épocas históricas determinadas, as relações do Direito – como as formas do Estado - não podem, com efeito, ser compreendidas a partir de si mesmas. Declara Marx: “O Direito não pode ser nunca mais elevado do que a formação econômica e o desenvolvimento sócio-cultural que é por ela condicionado”. Ou seja, de nada adianta o processo de formulação e promulgação FORMAL de direitos, pois a realidade material que os enseja está intrinsicamente em contradição com o escopo dos mesmos. É a questão do enfrentamento entre "Constituição real" contra a " Constituição escrita" de que falava Ferdinand Lassale.


Advertia Lassale que uma Constituição escrita só é boa e duradoura quando corresponder à Constituição real, ou seja, quando refletir os fatores reais e efetivos do poder.

Neste diapasão, leciona Lassale: "De nada serve o que se escreve numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos fatores reais e efetivos do poder."

É evidente que nem tudo que está previsto na Constituição pode ter aplicação "efetiva" por parte do poder público, e por vários motivos: falta de dinheiro, prioridades etc. É a chamada "reserva do possível"; mas mesmo assim o "mínimo existencial" do qual falei anteriormente deve ser garantido. Ana Paula de Barcellos escreve sobre isso em: "A eficácia jurídica dos princípios constitucionais". O entendimento mais "moderno", a partir da disseminação do neoconstitucionalismo, vai ao sentido da aplicabilidade direta e imediata das normas da Constituição, notadamente as referentes à proteção e promoção dos direitos fundamentais. Falar, por exemplo, em "direito à educação" e nada fazer nesse sentido (dizendo que é uma norma meramente programática) é fazer da CF letra morta. Bonito no papel, e só isso.

             A respeito,faz-se pertinente, enfim, a reprodução de brilhante trecho do voto do MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI na ADPF 186 (cotas raciais), proferido durante sessão plenária do Egrégio Supremo Tribunal Federal, no qual sentenciou com clarividência oracular que: “É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito – não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei. 

              (...) Para usar as palavras de Boaventura de Sousa Santos,“(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades ”.

             É bem de ver, contudo, que esse desiderato, qual seja, a transformação do direito à isonomia em igualdade de possibilidades, sobretudo no tocante a uma participação equitativa nos bens sociais, apenas é alcançado, segundo John Rawls, por meio da aplicação da denominada “justiça distributiva”.

Só ela permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo. Nesse sentido, ensina que: “As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos ”.

O grande jurista Hans Kelsen, por exemplo, após passar toda sua vida acadêmica discorrendo a respeito da problemática consoante a tal tema, terminou sua atividade intelectual escrevendo um livro intitulado “O que é Justiça?”, onde afirma que o importante não seria fornecer definição cristalina e categórica a respeito da supracitada matéria, mas sim jamais cessar o questionamento, a jacente reinvenção de respostas sobre o tema. Destarte, de acordo com a lavra kelseniana, não interessaria saber “o que é justiça”, mas sim nunca deixar de perguntar.

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